segunda-feira, 11 de abril de 2011

4º CAPITULO

Cidade da Gabela nos anos 1960 a 1975









Mas, tal como eu dizia, ao vermos os pirilampos tremíamos de medo daquelas aparições e temíamos que fosse algo pior. Durante o tempo que ali permanecemos, vimos passar, atravessando a estrada, vários tipos de animais da selva africana. Quatro horas mais tarde, o choufer apareceu e lá seguimos viagem. Passado algum tempo, finalmente chegámos à cidade da Gabéla. Dali seguimos para as grandes fazendas de café, de Mário da Cunha Brito, pai do Jorge Brito que foi dirigente do Benfica. Era este senhor, patrão do meu pai entre 1959 e 1968, que injectava muito capital no Benfica e construiu um Hospital na freguesia da terra onde eu nasci. Mário da Cunha Brito filho predilecto e grande benemérito desta freguesia. Para além disso, também nas suas fazendas, construiu, para os trabalhadores brancos e negros, bairros com boas habitações, hospitais com médicos e enfermeiros. Quando chegámos à casa onde vivia o meu pai, na fazenda Quitona, colocámos lá as nossas coisas e depois ele levou-nos a uma casa feita de pau e coberta com ramagem de palmeira, e qual não foi a nossa grande surpresa e admiração, quando ao olharmos para o tecto dessa barraca vimos dezenas de grandes cachos de bananas maduras ali penduradas. Foi comer até fartar! Lá ficamos a viver, naquela fazenda de café, entre grandes árvores centenárias, nos morros (montanhas) do Amboim, Cuanza Sul, perto das belas cachoeiras (quedas de água) onde o ar e as águas eram puras e os únicos barulhos que se ouviam eram os cantares dos belos pássaros que nidificavam por entre a ramagem das palmeiras, dos banzes, bananeiras, taculas, mulembas e cafeeiros. Aquela era uma zona de muito cacimbo (nevoeiro). Nalgumas manhãs, ele era tão denso que apenas se conseguia vislumbrar o que quer que fosse a uma distância de vinte metros. Só por volta do meio-dia, quando o Sol rompia víamos aquelas árvores repletas de pombos verdes. Eram tantos que por vezes havia árvores que continham mais pombos do que folhas. Estes viajavam em tão grande velocidade que perante o cacimbo não tinham tempo de parar antes de embaterem contra a nossa casa, que com a sua parede branquinha se confundia com o nevoeiro e acabavam por morrer. Nesta fazenda havia um grande terreiro (Eira de secagem) com alguns 1000 quadrados de terra batida que servia para secagem do café. Em volta desse terreiro havia muita bananeiras, ananazeiros, abacateiros, mangueiras, goiabeiras, papaeiras, mamãozeiros, pitangueiras e outros. 
De vez em quando, víamos passar por entre a selva, com plantações de café por baixo de arvoredo de grande porte, um comboio movido a lenha que fazia o trajecto de Porto Amboim à cidade da Gabéla, transportando mercadorias e pessoal. Embora fosse muito lento, este dava uma imagem bonita por entre a selva e dos morros do Amboim. A cidade da Gabela e o Porto Amboim eram ligados por um caminho-de-ferro onde circulava este comboio movido a lenha. Dois homens seguiam, de pé, entre a fornalha e a vagonete que transportava a lenha. Iam colocando lenha e mantendo a chama bem acesa para que a caldeira de água continuasse a ferver, tipo panela de pressão, para que, com essa pressão, empurrasse os pistões para cima e para baixo a fim de, através dos êmbolos, fizesse mover as rodas. Nas subidas teriam que dar força á fogueira, na descida teriam que, com um balde, atirar com água para a fogueira acalmasse e assim obrigaria o comboio a andar menos. Lá subia e lá descia, por entre a floresta deixando para traz muito fumo, o comboio apitando e fazendo “Pouca terra Muita terra, Pouca terra muita terra… e toda a floresta, nas encostas dos morros do Amboim, sorria ao ver aquele Comboio passar. Nas aldeias, à beira da linha, toda a criançada corria para verem o bonito comboio passar. Pipiiiiiiiiiiiiiiiiii Pipiiiiiiiiiiiiiiiiii… e no Chindinde parava para sair e entrarem passageiros. Ali, nestas fazendas do Congulo, na “Quitona”, estávamos no mato, isolados de toda a civilização, não havia sequer uma escola por perto, mas sentia-me na floresta do "Tarzam", era o mais lindo lugar que alguém poderá imaginar!
Quando a Filomena fez um ano, o meu pai comprou-lhe um triciclo, mas assim que eu me sentei nele, com uma perna no chão com a qual me empurrava, e a outra, na qual não tenho força, que apoiava no quadro do triciclo, descobri que aquela era uma boa e facilitada maneira de me fazer deslocar e ir bem mais longe. Assim passei a deslocar-me de triciclo, em casa, na rua, na companhia ou não de alguém. As minhas irmãs foram colocadas para estudar na cidade que ficava a trinta quilómetros, em casa de pessoas conhecidas e a quem o meu pai pagava a estadia. Eu fui descartado do direito de estudar. Tomaram-me por um inútil, inválido, sem direito a vida própria, alegando, o meu pai, que “a escola ficava longe e era necessária a protecção da minha mãe. Também, imagino eu, que para eles eu já não tinha qualquer préstimo e não valia a pena fazerem nada por mim”! Este era o raciocínio do meu pai, por causa do qual eu fui completamente negligenciado, despreocupando-se, os meus progenitores, de procurarem uma instituição onde eu pudesse estudar e integrar-me na sociedade. Por várias vezes, quando amigos do meu pai nos visitavam, ouvi-os dizer para ele: -“Foi mesmo azar, o único rapaz e ficar inutilizado!” O meu pai respondia-lhes sempre o mesmo: -“Pois é…fizemos de tudo o que estava ao nosso alcance, para o tratar mas foi impossível, enquanto formos vivos, seremos nós, quando morrermos terão que ser as irmãs a tomar conta dele”. O que ouvia não me agradava, porque na minha adolescência já me sentia muito atraído pelos estudos e na capital de Angola (Luanda) havia uma grande escola com internamento próprio, para reabilitação física e literária, onde os deficientes poderiam estudar e chegar mesmo a tirar cursos superiores. Esta escola era apoiada e comparticipada pelo Estado. Tudo o que dizia respeito a Geografia, História Universal, Matemática e Física fascinava-me. Aprendia sozinho, nos livros das minhas irmãs, quando acabavam o ano. Após terem deixado os estudos, porque só estudaram até ao quarto ano, excepto a mais nova, eu comprava livros de outras classes e continuava estudando isoladamente.

domingo, 3 de abril de 2011

3º CAPITULO

Porto de Luanda em 07 - 01 - 1963. Foi aqui o nosso desembarque. A primeira vista, o primeiro cheiro e primeiro calor naquela bela cidade em Angola.



Baía de Luanda em 07 - 01 - 1963. Ao olhar para esta Baía na Marginal de Luanda, parecu-me que: "era uma grande cidade e Lisboa uma aldeia".

Aquele navio era um luxo! No seu interior havia uma capela, um salão de dança, um de jogos, um de estar em conversa, um de refeições só para vip’s pois nós comia-mos dentro do quarto, eram umas hospedeiras que nos vinham trazer as refeições. Tivemos direito a dois quartos. Em um, dormia eu, minha mãe e uma das três irmãs. As outras duas, a mais velha e a penúltima, penúltima naquela altura pois veio a nascer em Angola outra (que é a cassula), dormiam em outro quarto. Quando saímos de Lisboa já era perto das 17 horas, chegamos a Lás Palmas no dia seguinte depois do meio-dia, no dia 31 de Dezembro de 1962.
Nesse mesmo dia, depois de carregar alguns passageiros, lá seguimos e minha mãe levou-me ao colo a ver tudo no interior daquela cidade navegante. Até me lembra de ir ao exterior! Numa larga e comprida varanda havia várias pessoas deitadas sobre uns cadeirões apanhando sol. Lembra-me até dos bikinis das senhoras bem á moda dos anos 60, com seus óculos de sol, o que mais tarde, ao ouvir “Natércia Barreto – Óculos de Sol”, fazia-me recordar aquela cena lá da esplanada do navio Vera Cruz. Aquela azáfama, lá no navio, ficou-me na memória apesar de, após a passagem de ano que se festejou nas águas do Atlântico, eu ter enjoado e nunca mais consegui comer. A partir do dia 2 de Janeiro já não saí da cama e acabei a viagem ligado a soro. Eu quase morto, fui entregue pela minha mãe, nos braços do meu pai. Ao sairmos do cais de desembarque, deparámo-nos, logo, com a marginal de Luanda, onde grandes edifícios se erguiam e em alguns deles enormes outdoors onde, de longe se podia ler “CUCA” (a cerveja mais famosa de Angola) “BCA” (Banco Comercial de Angola) e “NOCAL” uma outra cerveja, entre outros. Ao contrário do que acontecia na metrópole, onde certas coisas eram proibidas, em Angola já assim não era, por exemplo, a Coca-Cola, a Mission, a Canadadry, a SevenUp (7UP), (bebidas americanas), eram consideradas pelos angolanos bebidas deliciosas e não eram proibidas como acontecia em Portugal. Saímos de Luanda, eu, a minha mãe e uma das minhas irmãs, seguimos na cabine de um camião, uma velha Scania, que fazia transportes de mercadorias entre a cidade da Gabéla e Luanda. O meu pai seguiu com as outras irmãs, num carro ligeiro. Passámos uma tarde e uma noite, sempre a andar, por estrada de terra batida com poças de água das chuvas tropicais, entre a selva e savanas, numa distância de quatrocentos quilómetros. Quando tínhamos percorrido cerca de cento e cinquenta quilómetros, na zona do Dondo, o choufer, parou o camião na berma da estrada, por entre a floresta densa, para verificar a carga, e logo percebeu que duas malas que vinham em cima da carga tinham desaparecido. Deixou-nos, ali naquele deserto de floresta africana, acompanhados por dois ajudantes de raça negra. Apanhou boleia e seguiu para Luanda à procura das malas. Nesse momento, tememos pela nossa vida, sentimo-nos entre a vida e a morte. Nunca tínhamos visto nem contactado com negros, e logo no primeiro dia em que pisamos solo angolano, fomos abandonados dentro da selva, de noite e junto de homens da raça daqueles que o meu pai meses antes, quando escreveu à minha mãe contava, e ouvíamos na rádio dizer que “se revoltaram e esquartejavam todos os brancos”. Nós tremíamos de medo, e nem sequer sabíamos que aquele local, (do Dondo), estava inserido na zona dos ataques do UPA (União Popular Angola). Já noite escura, vimos dentro da floresta, uns pirilampos, mas nós, que estávamos no início de 1963, e que tínhamos ouvido falar dos ataques de Fevereiro de 1961,que continuavam em grande escala, feitos pelos revoltosos no Norte de Angola contra todos os fazendeiros e trabalhadores dessas fazendas, temíamos que aquelas luzes não fossem de pirilampos mas sim dos revoltosos. Os terroristas do UPA liderada pelo Lombumba, esquartejavam todos à catana ou com uma moca na cabeça e as crianças eram atiradas contra uma parede. Era o terror desde o distrito de Luanda até ao Cuanza Norte. Muita gente, ali, foi chacinada. Quem não aderisse ao UPA só teria uma de duas hipóteses: morrer ou fugir para Luanda e deixar tudo para trás. A UPA era um movimento Macongo ligado ao Congo. As populações eram obrigadas a ser evacuadas do Norte para Luanda, em aviões. Os negros dividiam-se entre a fidelidade aos colonos e os guerrilheiros. De início, durante essa evacuação, deu-se a vez às mulheres e crianças, todavia centenas tinham já sucumbido. Os maridos e pais dos que partiam ainda ficavam, juntamente com negros afectos ao patrão ou os Bailundos que eram trabalhadores e afectos aos brancos de uma etnia rival aos que compunham a UPA. Por essa altura o governo mandou distribuir, a todos os brancos, pistolas de polícia para defesa dos seus familiares. Como nunca se deram indícios de revolta na nossa zona, o meu pai nunca teve necessidade de utilizar aquela arma. Os negros do Norte eram rivais com os do Centro e Sul de Angola, pois tinham a mania da superioridade e nem conheciam a humildade. Eram muito arrogantes e por tudo e por nada espetavam facas uns nos outros, nem o Sóba (Governante da aldeia) lhes valia!

segunda-feira, 28 de março de 2011

2º CAPITULO

Tal como já referi, entrei para a escola quase com 8 anos, transportado num carrinho de transporte de crianças. Os meus colegas faziam-me diabruras: largavam a cadeira na descida do recinto da escola, para me verem a gritar pela minha irmã: “oh Palmirita…Palmirita” gritava eu aflito. A cadeira embatia contra o portão e eles viravam-se a rir, e eu também, passado o susto, sorria, por não me ter acontecido nada de grave. Outra aventura aconteceu, quando regressávamos da escola, numa pequena serra, situada no Práino, perto do sítio onde morávamos, levaram-me lá para o alto, largaram a cadeira e o Zézito, quase a borrar as calças gritava por socorro. Parecia que estava a fazer esqui, aos ziguezagues entre os pinheiros, até que lá já ao fundo embati contra um, virando-se a cadeira de rodas de frente para eles. Depois da aflição, e porque mais uma vez nada de grave acontecera, virei-me a rir, e eles, às gargalhadas, espojaram-se no chão. Apesar disso, éramos todos amigos. No dia 6 de Janeiro, estes e outros, já com idades compreendidas entre os 17 e os 20 anos, levavam-me com eles, a cantar e a tocar as Janeiras, de porta em porta. Lá vinham os donos da casa que, ao ouvir-nos cantar, davam-nos aqui uma broa, ali um chouriço, mais adiante uns ovos, umas cebolas e até o vinhito, e assim se ia enchendo o saco e a aldeia em alegria com o cantar das Janeiras. Ao fim da tarde desse mesmo dia, quando estávamos todos juntos na eira do povo, acendia-se uma fogueira punha-se uma sertã em cima de umas trempes e lá se fritavam os ovos com o chouriço e a cebola picada. Enquanto comíamos, tocávamos e cantávamos à volta da fogueira.




"As janeiras estão passadas

Chegadinho vem os reis,

Vinde lá os donos da casa

Com alguma coisa que nos deis"



O meu pai emigrou para Angola quando eu tinha cinco anos, deixando em Portugal a minha mãe com quatro filhos. Para nos governar, andava todo o dia fora, a trabalhar na agricultura por conta de outrem. Ao Sábado, porém, a nossa alegria era ir pela encosta do pinhal, até à beira do rio Alva, para lavar a roupa. A minha mãe levava uma canastra à cabeça e a mim ao colo. A minha irmã Palmira levava, à cabeça, um tacho com arroz de bacalhau, (não era bacalhau com arroz), para o almoço. Lá ficávamos todo o dia. Enquanto a minha mãe e a Palmira lavavam a roupa e a punham a secar, nós, os mais novos, brincávamos a atirar com seixos ao rio e a ver os peixes que se aproximavam. A água era límpida, até se podia beber, pois, ao contrário do que acontece hoje em dia, naquele tempo não havia poluição, nem se sabia o que isso era. Às vezes lá passavam uns homens com umas barcas empurradas por uma grande vara, que levavam com eles umas redes para apanhar peixe, uns taleigos (sacos), com cereais para os moinhos que ali perto funcionavam noite e dia, movidos pelas águas do rio. Ao domingo ia-se à missa, na igreja que distava sete quilómetros. A minha mãe levava-me sentado numa canastra à cabeça. Depois da missa comprava-nos sempre pão, que era uma delícia, por ser novidade e esporádico, pois naquele tempo, nas aldeias, só se comia broa de milho, feita e cozida pelas famílias lá de casa, e de farinha, do milho, cultivado pelos próprios. Da parte da tarde, todos sentados, no soalho da varanda, da nossa velha casinha, enquanto minha mãe remendava ou colocava um botão que se tivesse arrancado na nossa roupa, nós brincávamos em seu redor. Era uma mãe galinha. Nunca nos deixou passar fome: muitas vezes nós comíamos batatas com sardinha, enquanto ela comia batatas com batatas. Já no final de Dezembro de 1962, quando estava no início da segunda classe, (segundo ano), saí da escola e, nesse mesmo ano, abandonámos a aldeia que um dia me viu nascer. Entrámos no comboio, em Coimbra, rumo a Lisboa. Para trás ficavam os meus amigos e a minha aldeia, perdida nas montanhas da Beira Litoral. Ao chegarmos a Lisboa ficámos encantados com tudo o que víamos: os monumentos, as estátuas, os eléctricos os grandes barcos (paquetes) e a grande obra do governo de Salazar e que estava no inicio de construção, a Ponte de Salazar. Não posso compreender e nem aceito o facto de passarem a chamar àquela ponte “Ponte 25 de Abril”. Que quisessem recordar essa data, o fim de uma ditadura, compreendo, mas em vez de mudarem o nome da ponte, poderiam ter erguido um monumento, nessa altura, alusivas a essa data. Embarcámos num grande navio, “o Vera Cruz”, e lá seguimos, sobre as águas do Atlântico durante 10 dias, rumo a Angola.

terça-feira, 22 de março de 2011

1º CAPITULO

O dia 28 de Novembro de 1953, o sol acabara de nascer.
Os melros, as cotovias, as rolas e os pardais chilreavam, ao mesmo tempo que se ouvia o rodar das rodas, das carroças puxadas pelas juntas de bois, no piso das ruas, construído de calhau trazido do leito do rio Alva.
Era dia de feira, na freguesia de São Pedro de Alva, uma Vila da comarca de Penacova.
Na pequena povoação do Beco, pertencente a esta freguesia, por volta das seis horas dessa manhã, acabara de nascer mais um filho a Sr.ª Maria Trindade. O marido, Antero M. Sousa, levantara-se de noite para ir à povoação da Ribeira chamar a sogra para ajudar no parto, e o filho ali nascera, na sua humilde casinha, com a ajuda da sua avó Encarnação, mulher de Joaquim de Oliveira, conhecido na freguesia, por Joaquim da Lapa, moleiro de profissão, residente no lugar da Ribeira.
Na aldeia a notícia corria de boca em boca:
“-Bom dia Aurora, já sabes da notícia? A Trindade já lá tem um rapazito…o pai lá queria e ele lá veio”.
Era o terceiro filho que lhe nascera, porém o primeiro rapaz. O segundo, uma rapariga, morrera com poucos meses, num trágico acidente por um descuido da mãe, mas mesmo tratando-se de um trágico e lamentável acidente, não é dele que vou falar, mas sim da minha vida.
Aos nove meses comecei a dar os primeiros passos. Era uma criança cheia de vitalidade, corria para todos os lados, segundo dizem.
O meu pai até arranjou um banco na bicicleta para me levar com ele ao Domingo, a São Pedro de Alva. Todos admiravam o menino que caminhava ao lado do pai, com um ano e meio parecendo já um rapazito, apesar da tenra idade.
Porém, um dia, em Setembro, com apenas vinte e dois meses, fui apanhado por uma paralisia infantil, hoje, clinicamente conhecida por “poliomielite”, e nunca mais andei. Meus pais fizeram de tudo o que estava ao seu alcance a fim de verem se melhorava. Recordome, já com trêz anos, levaram-me, juntamente com minha irmã mais velha, para a Figueira da Foz a fim de ver se eu melhorava apanhando água do mar. Durante, sensivelmente um mês, um dia fomos ver circo e eu achei muita graça a um macaco e uma cábra que brincavam ao baloiço. Também me recordo de o meu pai dar uma tareia à minha irmâ Palmira pois ela era muito travessa e não era domável. Regressamos a casa, que se situa-va a serca de 60 quilómetros, e esse tramento, como outros, não fizera efeito algum. Só com o tempo eu fui adquirindo outras capacidades de me movimentar, como irão conhecer mais para diante. Fiquei atrofiado dos músculos e raquítico.
Os anos foram passando e quase com oito anos fui para a escola. Nesta altura era transportado numa cadeira de rodas que me fora oferecida. Era uma cadeira, com rodas grandes, idênticas às de uma bicicleta, tanto à frente como atrás, bem à moda dos anos 50 e que dava para transportar alguém quase adulto.
Era empurrado pela minha irmã Palmira, quatro anos mais velha, e pelos meus colegas. Brincava com os miúdos da minha idade arrastando-me com o rabo pelo chão. De tarde ficava sentado nos degraus de uma velha casinha, que ficava no largo da Republica. Os meus colegas e amigos, apareciam por ali para brincarem aos jogos, como o "espeta o pau" o "pião" ou fazerem rolar um arco com uma forqueta. Poema... "Tu corres atraz do arco... das uns pontapés na bola, Eu nunca pude fazer isso... nem antes e nem agora!". Enquanto isso, tambem os meus amigos faziam moinhos de junco e barquitos de papel que colocavam na água, que corria em abundância, pelas bermas da estrada e nas valetas abertas ao longo do tempo, pelo passar das carroças de bois. 

 
Ali, nesses degraus, um dia ia levando uma bofetada do ti’Joaquim Pilatos. O ti’Pilatos, como lhe chamávamos, era um homem já dos seus 70 anos, que andava com o auxílio de uma bengala. Nunca casara e dizia mal de quem tinha inventado o trabalho. Gostava do “tintól” e do cigarrito e tinha o hábito de andar a apanhar os restos dos cigarros (beatas) para juntar e fazer umas cigarrilhas.
Certo dia, os meus companheiros decidiram apanhar essas beatas e fizeram uma cigarrilha mas colocaram numa das pontas 10 cabeças de fósforos. Acenderam a cigarrilha no lado oposto e entregaram-na ao ti’Pilatos, mas trataram logo de se afastar e ficaram a olhar, à espera que o mesmo explodisse e lhe chamuscasse o bigode. O homenzinho deu um salto e pouco faltou para ser eu, que não podia fugir, a ter que pagar por essa maldade.
Como esta, muitas outras loucuras lhes fazíamos, no entanto, o ti’Pilatos, sentia-se bem ao pé de nós e todos os dias nos procurava.
Também eu não dispensava a companhia desses amigos, alguns da minha idade, outros dois e quatro anos mais velhos.
Ainda, nesses mesmos degraus, algum tempo depois, quando me encontrava sentado, sozinho, comendo um naco de broa com meia dúzia de azeitonas, passou por mim uma senhora já velhinha e, ao ver-me colocar de uma só vez uma azeitona na boca, disse-me:
- Oh rapazito! Tu és mal-educado, olha que essa azeitona dava para colocares na boca por duas vezes!
Era assim naquele tempo, a escassez de alimentos levava muita gente a proceder dessa maneira.